fonte: Folha de SP
por Cláudia Collucci
O caso da fosfoetanolamina, a droga que supostamente trata o câncer, é um ótimo exemplo de como a inércia de uma instituição pública pode gerar consequências desastrosas.
Vejamos: Gilberto Orivaldo Chierice, então professor do IQSC (Instituto de Química de São Carlos, unidade da USP), desenvolveu um método próprio para sintetizar a fosfoetanolamina, e após um único teste em ratos (o de dose letal, que verifica a quantidade de substância capaz de matar) considerou a droga segura e começou a distribui-la diretamente a pacientes, no próprio instituto de química. Só em 2013, ano em que Chierice se aposentou, no instituto foram distribuídas 50 mil cápsulas, segundo ele disse em entrevistas.
Agora que o caldo entornou, com as centenas de liminares determinando que a USP continue fabricando e a entregando a substância, a universidade emitiu uma nota não assumindo a titularidade da pesquisa. Diz que a droga foi estudada de forma independente pelo professor Chierice. “(…) Ela foi doada [aos pacientes] por ele, em ato oriundo de decisão pessoal”.
Como assim? Como o professor passa anos e anos fabricando e distribuindo uma substância fora dos protocolos de uma pesquisa clínica, dentro do ambiente universitário, e a USP não fica sabendo? Quem pagou a matéria-prima gasta para fabricar essa droga? E o funcionário que operou a máquina? É preciso que a USP apure muito essa história, puna os responsáveis e torne tudo transparente. Eu, como contribuinte, quero muito saber quem pagou essa conta.
A verdade é que esse caso só tomou as proporções que tomou porque havia uma grife USP por trás: “as cápsulas da USP”, é o que as pessoas dizem. Se fosse um zé-ninguém fabricando remédio para câncer no fundo do quintal, haveria filas e liminares para obtê-lo? Não. E muito provavelmente o zé-ninguém já estaria preso.
Agora, há uma histeria coletiva em curso e teorias da conspiração de todas as ordens. A mais corrente diz que a indústria farmacêutica não está interessada em fabricar uma droga barata para a cura do câncer e que, por isso, tenta impedir a “cápsula da USP”. Qualquer um que resolva alertar para o absurdo dessa situação, para o perigo de uma droga só testada em ratos estar sendo ministrada a doentes, logo é desqualificado e tachado de ser “patrocinado” pela indústria.
Ainda que pese o fato de a indústria farmacêutica ter estado envolvida em muitos escândalos nos últimos anos (quem leu “A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos”, de Marcia Angell, sabe do que estou falando), não há a mínima razão para acreditar que, neste caso, haja uma conspiração em curso.
A fosfoetanolamina pode até ter uma ação anticancerígena, mas muitas outras moléculas também têm. De cada grupo de 10 mil moléculas inicialmente estudadas, apenas uma ou duas chegam ao mercado depois de dez, 15 anos de estudos clínicos e não clínicos. O fato é que Chierice, que detém a patente da droga, não fez a lição de casa. Não submeteu a substância ao escrutínio do método científico. É mais fácil vender a ilusão de que descobriu uma droga que cura o câncer do que provar que ela realmente funciona.
Centenas de drogas já foram apontadas como miraculosas no tratamento do câncer sem que houvesse sua comprovação científica e aprovação dos órgãos reguladores. Não cumprir todo o rito necessário da pesquisa clínica para avaliar a segurança e a eficácia traz riscos, inclusive de a droga interferir negativamente no tratamento que a pessoa já está fazendo.
Adoraria acreditar na existência de uma droga capaz de curar o câncer e poupar do sofrimento tanta gente que padece desse mal. Mas, infelizmente, ainda não chegamos lá.
No momento do desespero, as pessoas são presas fáceis. Já existe até uma suposta associação de defesa do consumidor induzindo as pessoas a entrarem com ações judiciais para obter a substância. Cobra R$ 600 a adesão e R$ 80 a mensalidade.
O alento é que casos de charlatanismo têm rendido indenizações a vítimas. Ano passado, o pai de um menino que morreu de câncer de fígado ganhou R$ 30 mil de indenização de uma empresa que vendia o produto “Cogumelo do Sol” e que prometia ajudar na cura da doença. Após três anos de “tratamento”, o menino morreu e o pai se sentiu enganado pelas falsas promessas de cura. Recorreu à Justiça e ganhou o processo. Se o mesmo acontecer com fosfoetanolamina, quem pagará por isso?
P.S. – Muita gente tem citado o Hospital Amaral Carvalho, de Jaú, como local em que as cápsulas de fosfoetanolamina teriam sido testadas com sucesso. Mas o hospital afirmou em nota que não há nenhum registro sobre a utilização da droga por pacientes da instituição